Por André Cintra

Militares são a categoria com mais processos encaminhados à Comissão de Anistia. Destacam-se oficiais que participaram “das lutas pelas grandes causas nacionais”.

A ditadura inaugurada no Brasil há 60 anos, com o Golpe de 64, foi protagonizada pelos militares. Nos 21 anos do ciclo autoritário (1964-1985), todos os presidentes da República eram generais do Exército.

Nem por isso o apoio ao regime era unânime nas Forças Armadas. O caso mais notório de oposição à ditadura entre os militares é o de Carlos Lamarca, o capitão que desertou do Exército e aderiu à luta armada, liderando a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Considerado “traidor” pelo Superior Tribunal Militar, Lamarca virou o “inimigo número 1” da ditadura, que o assassinou em 1971.

O Estado brasileiro, porém, não castigou apenas desertores. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV) – que, de 2012 a 2014, investigou as violações aos direitos humanos cometidas pelo regime –, houve ao menos 6.591 militares perseguidos. Entre as Forças, sobressai a quantidade de casos na Aeronáutica (3.340) e na Marinha (2.214).

“Formado por oficiais e praças, esse grupo foi perseguido de várias formas: mediante expulsão ou reforma; sendo seus integrantes instigados a solicitar passagem para a reserva ou aposentadoria; sendo processados, presos arbitrariamente e torturados; quando inocentados, não sendo reintegrados às suas corporações; se reintegrados, sofrendo discriminação no prosseguimento de suas carreiras. Por fim, alguns foram mortos”, indica a CNV.

A primeira leva de punições atingiu oficiais contrários ao Golpe de 64. O general-de-brigada do Exército Euryale Zerbini foi preso logo após a tomada do poder pelas Forças Armadas. O golpe ocorreu em 1º de abril de 1964. Oito dias depois, em 9 de abril, o regime cassou por dez anos os direitos políticos de Euryale, um legalista que encabeçava a lista de militares alvejados pelo Ato Institucional Nº 1 (AI-10)

“O general era um militar perfeito”, declarou, em 2014, a ativista dos direitos humanos Therezinha Zerbini, viúva de Euryale. “Quando houve a quartelada, eu senti muito, porque sei o quanto o general amava a instituição. E eu tive muito orgulho por ele não ter feito parte desse bando que destruiu o Brasil.”

Euryale foi preso, mas não foi torturado. No entanto, muitos militares que confrontaram mais diretamente a ditadura, sobretudo nos governos Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974), sofreram com a repressão. Conforme a Comissão Nacional da Verdade, há vários militares entre os 434 brasileiros que morreram ou desapareceram sob o regime.

A primeira vítima da ditadura, por sinal, foi um militar – o tenente-coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro. Leal ao líder trabalhista e ex-governador gaúcho Leonel Brizola, ele foi executado em 4 de abril de 1964, três dias após o golpe. A autópsia apontou 16 projéteis em seu corpo e deixou claro que Alfeu foi metralhado pelas costas.

Outro oficial legalista a pagar com a vida foi Manoel Raimundo Soares, o “sargento das mãos amarradas”, que morreu sob tortura no Rio Grande Sul, em 1966. Seu corpo foi encontrado às margens do Rio Jacuí, em Porto Alegre (RS), com as mãos e os pés atados às costas. Se o caso de Alfeu ficou sob anonimato por décadas, o assassinato de Manoel Raimundo chocou a opinião pública.

Bem antes da Comissão Nacional da Verdade, houve a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que foi criada em 1995 e, em poucos anos, reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro em diversas mortes de origem suspeita sob a ditadura. A exemplo do jornalista Vladimir Herzog, “suicidado” no quartel-general do 2º Exército, em São Paulo, alguns militares executados pelo regime tiveram as circunstâncias da morte acobertadas.

Passado o Golpe de 64, o terceiro-sargento do Exército Edu Barreto Leite, de 23 anos, foi trabalhar na rádio do Ministério da Guerra, passando a ter acesso a informações delicadas para o regime. Seus superiores desconfiaram que o oficial estava repassando esses dados para organizações de esquerda.

Em 13 de abril de 1964, quando estava em seu apartamento no Rio de Janeiro, Edu foi encurralado por homens do Exército e arremessado da janela, despencando do sétimo andar. Embora tenha sobrevivido à queda, ele não resistiu aos ferimentos e morreu no Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. O Exército alegou suicídio – versão que só foi oficialmente desmentida pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

“Os militares são a categoria com o maior número de processos encaminhados à Comissão de Anistia”, indica o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Entre os 6.591 militares perseguidos, destacam-se, de acordo com o texto, os oficiais que participaram “das lutas pelas grandes causas nacionais”.

A oposição à ditadura nas casernas, em 1964, foi relativamente maior do que a resistência ao golpe tramado pelo então presidente Jair Bolsonaro, em 2022. A participação recente de tantos generais no golpismo bolsonarista mostra que, com o passar do tempo, o respeito à legalidade se esvaiu ainda mais entre os militares.

André Cintra é jornalista

Fonte: Vermelho